As estruturas polimóricas: prefácio de "Terezinha", de Josué Souza


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Dois caras trabalham juntos, Franklin e Alex; acontece de os dois estarem apaixonados — um pelo outro. Entretanto, no ambiente de trabalho, a firma comandada pelo corpulento Venceslau (“machão” e homófobo de carteirinha), não há espaço para o desejo, quanto mais entre dois colegas do mesmo sexo, pois o chefe grosseirão mantém a todos na paranoia de uma vigilância cerrada. Nessa rotina castradora, apenas as paredes dos mictórios masculinos dão o testemunho de tantos desejos reprimidos, expressos na forma de convites sexuais. Ali, Franklin e Alex se encontram e, pelo vão inferior que separa os mictórios, roçam seus pés um no do outro. Franklin, porém, recusa qualquer possibilidade de um estreitamento de relações, de uma maior intimidade entre eles. Essa história do conto “Só um beijo” (um beijo solicitado, mas negado) oferece a imagem de um mundo onde os desejos e as identidades “desviantes”, que escapam à norma estabelecida, não encontram lugar. Mesmo sem lugar, porém, acabam se manifestando na borda do universo social institucionalizado, nos interstícios da ordem.

Vê-se que o lugar dos desejos e das identidades em situação de desvio é um não lugar, uma posição ambígua e vacilante; trata-se de uma vivência entregue ao fluxo de um desejo polimorfo, pois, como não há lugar definido, também não há parâmetros, a não ser aqueles estipulados pelos discursos que visam disciplinar os afetos: pecado, abominação, imoralidade, doença. As personagens do livro Queer vivenciam essa indefinição identitária, a dos que escapam aos modelos comportamentais pré-estabelecidos, desde a lésbica que se veste de maneira masculinizada, e por isso é confrontada por sua companheira (“Rascunhos de mim mesma”), até o menino delicado que sonha em jogar futebol e não é aceito por seus colegas (“O que não se pode comprar com chocolates”). Já o protagonista de “Amor irritante” vive sua rotina como quem desempenha um papel numa peça, ao passo que sua verdadeira existência ele a reconhece quando se pinta de palhaço para alegrar festas infantis. Ou seja: é por meio da máscara e da maquiagem que ele assume seu eu autêntico; para ser ele próprio, é preciso que surja como outro aos olhos dos demais, pois as expectativas que a sociedade projeta sobre sua pessoa o desviam de sua percepção de si mesmo. Apenas a esse outro é permitido viver suas fantasias. Tal personagem encontra-se às voltas com a contratação para seu primeiro emprego; assim como em “Só um beijo”, o trabalho é um mecanismo para enquadrar os sujeitos nos escaninhos do sistema.

Contudo, essa ambiguidade constitutiva não se dá apenas ao nível do enunciado, vivenciada pelas personagens, pois ela também fundamenta o processo de escrita. Em “Inusitado flerte”, por exemplo, demoramos para ter certeza de que o narrador que dialoga com seu amante machista — que, por sinal, possui uma visão rígida e convencional da identidade de gênero masculina — é um homem. Aliás, as vozes de ambos se misturam no fluxo narrativo e, não fosse o emprego das fontes em itálico quando se trata do discurso do interlocutor, poderiam ser confundidas. Algo semelhante acontece em “Terezinha”, cujo sexo do narrador protagonista, dividido entre os dois amores de sua vida: Luís e Tereza, fica um tanto indeterminado, embora seja também um homem. E ele se prepara para subir ao palco em sua estreia como artista, quando finalmente assumiria sua verdadeira identidade diante do público (da mesma forma como o protagonista de “Amor irritante” se descobre ao se travestir de palhaço); assim ele diz: “Era a minha estreia: assumir o que eu era e para quem me aplaudiria”. O palco, o lugar da ficção e da fantasia, uma vez mais é o lugar onde se pode ser quem verdadeiramente se é, pois, se a realidade não abre espaço à vivência do sujeito, é preciso inventá-lo, sonhá-lo (e, se preciso, aluciná-lo). Daí entende-se a temática carnavalesca de “Resquícios de fantasia e foliões” e o universo imaginário habitado pelo garotinho superprotegido de “Casinha de bonecos”, onde Arlequim pode se casar com Pierrot e Cinderela com a Colombina.

O protagonista de “Terezinha” expõe seu verdadeiro eu na medida em que encarna um outro feminino: “No meu ato, as canções de Elis Regina”. Esse travestismo existencial é o cerne de “O menino que se via Clarice”, que só se sente de fato escritor ao inventar para si um alter ego, ou um heterônimo, de outro sexo. É na identificação com essas duas mulheres icônicas da cultura brasileira, Elis e Clarice, que as personagens masculinas se definem subjetivamente, tomando a obra das duas artistas como referência na organização de seu horizonte vivencial. Num mundo em que é negado reconhecimento às formas de ser que não se restringem à normatividade sexual vigente, as identidades tornam-se necessárias autoficcionalizações. Aqui pode estar a chave para a gênese da “autora” Bridgit Baldavir, de maneira que o conto “O menino que se via Clarice” pode ter alguma coisa de autobiográfico, contrariando a advertência no início do volume, que é para ser lida como ironia borgiana.

Diversas personagens de Queer vivem embaralhadas entre a realidade e a ficção (e suas fantasias sexuais alimentadas pelo universo pop), como o cara pelado de “Quando Clodovil me viu em meus trajes nus”, o sujeito apaixonado pelo escritor João Paulo Cuenca em “Só Cuenca pra escrever meu amor” e a travesti do conto “Encabulada”, apaixonada pelo Capitão Nascimento, do filme Tropa de elite. Em “Rascunhos de mim mesma”, por sua vez, a vida de um casal lésbico se projeta num relato alegórico inventado por uma das personagens. Intensificando esse processo de abrandamento da sensação do real, alguns contos se passam numa atmosfera meio alucinatória e onírica; o maior exemplo está justamente em “Clodovil me viu em meus trajes nus”, que apresenta um desses sonhos nos quais nos encontramos despidos em público. Verificamos, nos contos de Queer, o universal embate entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, que se dá em cada um de nós, mas agravado numa sociedade que nega ao desejo não normatizado o direito de existência ou de livre manifestação. Diante das interdições que pesam sobre esse tipo de desejo, personagens e linguagem instalam-se na fronteira do delírio, algumas vezes aquém, outras além dela. Em suma, num universo em que a espessura do real vai sendo rarefeita, o desejo ganha concretude, infiltrando-se nas tramas da vivência e indefinindo contornos. Estabelece-se, assim, uma dialética entre a fantasia e a frustração, que serve de cambiante ponto de ancoragem à vida das personagens e aos procedimentos ficcionais.

Na esteira de um desejo polimorfo, que desestabiliza o conjunto das referências que nos dão a ideia do real, nada é estável; tudo pode assumir novas e inesperadas formas. Esse princípio afeta, inclusive, a forma literária e seus aspectos compositivos. A priori, estamos falando de contos, que, grosso modo, definem-se como narrativas em prosa de curta extensão; no entanto, verifica-se uma saturação poética da linguagem, uma impregnação do vivencial nas palavras e na sintaxe, que faz com que o texto deslize para os domínios do lirismo e as delimitações entre o mundo interior e o exterior das personagens fiquem esmaecidas por meio do uso frequente do fluxo de consciência. Há, também, uma variabilidade dos registros miméticos. Num conto como “Rascunhos de mim mesma”, por exemplo, a abordagem mais realista a partir da qual o cotidiano das duas mulheres é representado serve de moldura para uma história alegórica, de caráter fortemente conotativo, mas que incorpora elementos triviais da rotina de um casal qualquer de classe média. Em “Só Cuenca pra escrever meu amor”, as fantasias platônicas do narrador em relação a Cuenca coexistem com um relato pormenorizado de acontecimentos da vida universitária, incluindo informações burocráticas. Já em “Encabulada”, a ausência de pontuação nos apresenta o fluxo informe do pensamento da personagem, justamente uma travesti, cujo corpo abole as barreiras entre os sexos, assim como, no conto, as orações e os períodos sintáticos se imiscuem numa massa verbal. Ainda no tópico dos procedimentos formais, é interessante notar em “Se deixarem Deus me olhar de frente” como a condição inominável do protagonista diante da comunidade religiosa por ele frequentada faz-se sentir na textura da narrativa pelas várias lacunas deixadas em aberto na enunciação. O interdito manifesta-se na linguagem na forma do não dito.


Em Queer, todas as dimensões da obra parecem subordinadas a essa vivência do desejo como algo deslocado da realidade, dissolvendo limites entre realidade e ficção (o que inclui tanto a vida das personagens quanto a própria obra, assinada sob pseudônimo feminino) e entre gêneros, sejam eles sexuais, sejam literários. Tudo nos escapa; nada é sólido. A vivência da marginalidade em relação às formas do ser e do amar constitui-se como a matéria existencial a partir da qual os contos são escritos, evidenciando-se no conteúdo e sedimentando-se na forma literária. Estamos diante de uma completa integração dos diversos aspectos do texto e deste com a vida. No final das contas, o todo nos aponta a questão da identidade (o ser) que nunca assume uma forma estável, uma forma de estar, e essa indefinição constitutiva é o eixo em torno do qual gravitam as narrativas do livro.

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